A VERDADE É…

Houve Tarde e Manhã
12 min readApr 20, 2021

Sabemos que é sempre violento, quando alguém imagina-se possuidor-conhecedor de algo ou alguém. E embora essa postura de possuidor-conhecedor seja uma ilusão do ponto de vista filosófico, teológico e teórico, do ponto de vista ético-político é muito real e palpável, e já ceifou muitas vidas, organizou muitas políticas e atravessou muitos fiéis.

em uma linguagem religiosa:

é sempre violento quando alguém imagina que o que diz sobre Deus, é o que Deus de fato diz.

é sempre violento quando alguém imagina ter entendido o que Deus disse, e isso é exatamente o que ela está dizendo.

é sempre violento quando, em certo sentido, a distância entre o que eu penso sobre Deus e o que Deus é some. Quando esquecemos que ele habita em luz, mas esta é inacessível. Perde-se a provisoriedade das construções e anula-se a necessidade da pluralidade.

Porque nesse sentido, se Deus tem uma opinião, essa opinião é a minha;

se Deus tem um parecer, esse parecer é o meu;

se Deus tem uma sugestão, essa é a minha…

é por isso que Nietzsche e Heidegger, Karl Barth, Paul Tillich, Gianni Vattimo, Umberto Eco, Hannah Arendt e Jacques Derrida, muitos e muitas… independente das origens e pertenças filosóficas-teológicas-sociológicas, reconhecem nessa postura (posse e domínio da verdade) um perigo ético-político, e por isso, profundamente espiritual.

De modo que é profundamente necessário afirmar a limitação das construções de uma comunidade com relação a um objeto observado, em especial se isso for,

sim, isso mesmo, Deus.

com Jesus foi mais ou menos isso: uma comunidade de intérpretes não acolheu a leitura-reveladora de Iahweh na boca de Jesus. E como pretendiam-se possuidores de Iahweh e fonte autoritativa sobre o que Deus se agrada ou não, acham legítimo e justificável matar um homem. Afinal, a proporção da minha ação é proporcional ao poder do objeto. Uma ofensa ao Deus Todo-Poderoso, carece de uma reação Toda-Poderosa.

e assim se deu: é justificável matar Jesus, um blasfemo, porque disse coisas contra o próprio Deus. Mas pera? Contra Deus, ou contra a leitura-sobre-Deus dos escribas, fariseus e saduceus?

A jornada de Jesus, narrada nos evangelhos, é nesse sentido, um testemunho do perigo de imaginar-se como possuidor da verdade, no caso, de Deus.

na tentativa de responder a esse modo de olhar a vida e o mundo,

que as ciências começaram a se organizar,

em especial por perceberem (por esforço filosófico? por constatação histórica? por acaso? por um… bem… digamos… Mistério envolvido e fundante na vida?)

que as implicações ético-políticas dessa postura sempre são perversas.

É aqui que Heidegger enfatiza a ideia do “fim da metafísica”. Como assim?

Não se trata do fim de uma realidade não material, como se o que existe é apenas o material, mas sim o fim de uma ordem organizadora e universal de toda a realidade, a qual é possível acessar e manusear, como se “o ser fosse um espetáculo”. A filosofia hermenêutica de Heidegger afirma a inacessibilidade e indomabilidade do “Ser”- esse mistério indefinível que está por detrás da existência. Ele não é definível, e o fim da metafísica é a afirmação dessa compreensão e lugar de distância das nossas leituras, impressões, compreensões, inteligências, estudos e ciências…

Parece ainda confusa e difícil a compreensão sobre o “fim da metafísica”, e talvez a aplicação desse encadeamento filosófico de Heidegger a partir de outras linguagens, ajudem.

por exemplo,

para o religioso

a compreensão heideggeriana sobre o fim da metafísica soariam como a afirmação: “você, que é crente, lembre-se de que o que você acha de Deus não é o próprio Deus, e quando você pensa estar falando em nome de Deus, você está falando a partir de uma comunidade específica, dentro de um recorte histórico específico, e para uma comunidade que partilha dos mesmos paradigmas que você”.

do jeito que estou falando, parece que essa se torna uma verdade absoluta, uma conformação a uma ordem de como a realidade funciona. Do tipo “antes ela funcionava assim, e agora ela funciona assim, e trate de se adaptar e aceitar isso”. mas isso seria incoerente, certo?

sim, bastante.

é por isso que Vattimo brinca lembrando Nietzsche:

tudo é interpretação,

inclusive

essa, de que tudo é interpretação.

dentro do paradigma filosófico, essa construção é fundamental para explicar a realidade da famigerada pós-modernidade, ou modernidade tardia, ou a era da pós-metafísica. A compreensão de que falamos a partir de uma historicidade específica, pertencentes a uma comunidade específica, atravessados por interesses específicos (nem tudo isso é sistematizado no pensamento heideggeriano, mas sem dúvidas se desdobram a partir dele), antecedidos por uma tradição específica… combatem decisivamente a violência que existe por trás de uma teologia “metafísica”, onde o que eu falo sobre Deus é o próprio Deus.

sei o que você pensa: “Israel, isso seria cair num relativismo, porque então tudo vale!”

e eu diria que não, e acrescentaria: “desprender-se do modo de produzir conhecimento metafísico só é um problema para quem tem medo de perder poder.”

Como perguntou Gianni Vattimo: a quem interessa manter essa crença de que as minhas proposições e sugestões correspondem exatamente ao objeto em análise? Definitivamente, isso importa aos poderosos. E interessa também aos que têm medo: precisar lidar com leituras diferentes que, por vezes, podem escancarar minha própria maldade, não é bom, mas sim assustador. A possibilidade de ter que rever e se desprender de algo que formou minha vivência por 10, 20 ou 30 anos, assusta…

Um homem que não quer se ver como racista, precisa combater a teologia negra de James Cone dizendo que aquilo é uma perversão do que a Bíblia diz, do que Deus acha.

um homem que não quer se ver como machista, precisa combater a teologia feminista de Ivone Gebara dizendo que aquilo é uma perversão do que Deus pensou e diz pela Bíblia.

Um rico que não quer rever o uso de suas riquezas, precisa combater a teologia da libertação dizendo que é marxismo e não o que Deus diz.

se apela para uma ordem de como as coisas são,

do que Deus acha,

do que a Bíblia claramente diz,

do que o autor quis intencionalmente dizer,

se apela para uma “metafísica” — no pensamento Heideggeriano, como se a leitura específica da comunidade deles fosse verdade porque corresponde ao próprio Deus e sua intenção.

na linguagem de Heidegger, essa é a metafísica que precisa de um fim.

mas veja

uma mulher, um jovem negro, um teólogo da libertação…

que não querem se ver como violentos na defesa de suas pautas, ou que não assumem as contradições e limitações do seu pensamento e suas propostas de realidade, precisam combater a teologia calvinista, teologia patriarcal, teologia norte-americana… dizendo que aquilo é uma perversão do que a Bíblia diz, como se fosse uma contradição do que

Deus acha,

do que a Bíblia claramente diz,

do que o autor quis intencionalmente dizer,

do que é o profetismo,

apelam igualmente para uma realidade de como as coisas são, uma ordem, “metafísica”.

Não estou, antes que me acusem, equivalendo as dores dessas comunidades minoritárias (a mulher, o negro, o pobre) com o domínio dos homens-brancos-ricos. Tudo isso é historicamente, sociologicamente e financeiramente comprovado (claro, dentro desses paradigmas e desses instrumentais de análise).

O que estou comparando é a forma de produzir conhecimento (necessariamente violenta) de se portarem como possuidores do Mistério, orquestradores de como a realidade de fato é, como veículos da verdade, como se, em um determinado momento, eles acessaram e descobriram sobre como as coisas devem ser, e agora são porta-voz desse “Ser”, “Deus”, “Ordem”… esse é o saber “metafísico” que especialmente na filosofia de Heidegger, carecem de um fim por uma necessidade ética-política.

dizem que foi aqui que Marx se perdeu.

A sociedade industrial na Rússia era como deveria ser por uma conformidade divina e por uma estruturação intocável. Simplesmente era para ser assim: os ricos em cima, os proletários abaixo, os dominantes e os dominados. Mas quem disse que é assim? Essa premissa precisava ser questionada. Marx, num ímpeto de relativização dessa ordem, nega a metafísica (enquanto ordem universal e acessível de como as coisas de fato são). Isso é ótimo! Mas nesse processo ele reduz a existência ao material, e inocentemente pretende uma pureza de sua construção.

Ele acertou em partes, mas errou decisivamente ao achar que sua leitura de mundo era…

o próprio mundo. Ele questionou o que estava posto, menos a alternativa que queria pôr no lugar. Foi mais ou menos isso: “esse projeto de sociedade não é real, o real é…”

O que eu quero enfatizar, portanto, é:

toda leitura é uma leitura,

e esta é limitada historicamente, antecedida por uma tradição, herdeira de uma cultura, atravessada por um interesse, pertencente a um paradigma específico…

Quer ver?

Quem lê a Bíblia a partir dos óculos da apologética, estão antecedidos por uma tradição de leituras e releituras da Bíblia a partir dos instrumentais científicos (porque a apologética é uma resposta a um desafio moderno que demitologizou o texto bíblico),

são pertencentes a um paradigma positivista (porque participam da crença de que a ciência é o crivo para o que é real e verdadeiro) ,

e claro, é “interessadamente” apologético… lê a Bíblia com o interesse de defendê-la.

Isso quer dizer que suas produções não são verdadeiras? Isso se pode discutir dentro do paradigma filosófico, teórico, teológico da comunidade dos apologetas. Quer dizer que não há contribuição deles para a compreensão sobre a revelação de Deus? Claro que não, são contribuições reais e limitadas, e nunca dizem sobre quem é Deus totalmente.

O que leva Vattimo a dizer que

quando se afirma uma coisa, apresenta-se também o paradigma para verificá-la, dão-se as coordenadas dentro das quais essa afirmação é verdadeira ou falsa [1]

É uma tentativa de tranquilizar aqueles que com medo de renunciarem a essa instância metafísica, assumem que recairiam de pronto num relativismo.

Agora você poderia objetar: mas Israel, isso é filosofia, não teologia.

Concordo. Não consigo assinar em tudo que Heidegger e em especial Vattimo desenvolvem.

Acredito que em Deus nos movemos e existimos e que suas opiniões, reações, sabedorias, inteligências testemunhadas no que chamamos de Bíblia, dizem respeito a mim, ao próximo e ao cosmos. Creio que existe como fundamento da realidade uma “Presença Originária” que quer interagir conosco e nos conduzir por um caminho de vida. Não acho que todo o processo de verdade é apenas uma construção, creio que a verdade é uma pessoa chamada Jesus. Acredito que interajo e respondo junto da minha comunidade chamada Igreja ao que Deus está falando e que isso serve para orientar minha vida e a saúde da minha jornada.

Mas,

como tudo na vida tem um mas,

eu acredito nessa inacessibilidade, limitação e historicidade do intérprete-leitor

que Heidegger e as escolas derivadas dele tentaram afirmar.

E além disso,

acredito que ele não foi tão original assim.

Vejo na Bíblia, que agruparam os testemunhos das comunidades e pessoas,

que registraram suas histórias de amor com Deus,

essa sabedoria da limitação.

Vejo isso inclusive em mais de um momento, mas em especial três momentos, pertencentes a tradições e contextos diferentes:

a criação e a sugestão da serpente;

a poesia do salmista;

a mística de Paulo.

A criação é uma poesia que, no imaginário teológico despendido em Gênesis, narra sobre todo o universo. E na tentativa de explicar como a maldade entrou no mundo, como a criação se corrompeu, os autores narram um encontro e um diálogo da humanidade (dessa vez na figura da mulher), com a serpente.

poderia focar no percurso deformador que a serpente fez da fala de Deus, mas acho que aqui não se faz necessário. Enfatizo apenas a palavra que a serpente deu à mulher, para seduzi-la a comer:

“vocês não morrerão se comer, certamente.

porque Deus sabe que, no dia em que dele comerdes

se abrirão os vossos olhos, e serão como Deus, sabendo o bem e o mal.”

“serão como Deus”, foi a sugestão da serpente.

Parece-me que a serpente tenta ilustrar Deus como alguém que criou regras questionáveis, apenas para que a humanidade não se torne como ele. Parece mesquinho, né? sim, eu também acho. Essa é a construção da serpente que a humanidade, na figura de Adão e Eva, desejam.

dentro da humanidade tem esse desejo de querer ser mais do que criatura,

de cobiçar ser um deus.

Essa é a jornada do Faraó, dos Reis, de Herodes, de Nabucodonosor, dos Césares.

querem ser adorados, festejados, celebrados… querem ser mais que, humanos.

E qual foi a saída que Deus criou?

“Vamos expulsar o homem e a mulher, a humanidade, do Éden porque eles são como nós, versados no bem e no mal…

exceto pela?

sim,

eternidade.

Deus é eterno, o ser humano, não.

Deus expulsa o homem (humanidade) do jardim para que não “estenda a sua mão, e torne tome também da árvore da vida, e coma e viva eternamente. Deus coloca o homem dentro de um limite de tempo: ele nasce, se multiplica e morre, como uma planta…

não será isso,

ser histórico?

Deus insere o homem na história

como uma forma de salvá-lo de sua própria maldade.

O coloca necessariamente no interior de tradições, heranças, tribos, genealogias, limitações, comunidades…

É essa alteridade radical com Deus que choca o salmista, na sua poesia-oração. Ele entende que “quanto ao homem, os seus dias são como a erva, como a flor do campo assim floresce”, e que, “passando por ela o vento, logo se vai, e o seu lugar não será mais conhecido”. O salmista entendeu que a radical alteridade do homem diante de Deus é justamente a sua limitação antropológica a esse tempo. Ele pede a sabedoria ao “Senhor” que é o “refúgio de geração em geração”, a “contar os dias”, porque “mil anos” são aos olhos desse Deus eterno, como o “dia de ontem”.

a radical alteridade do Deus (eterno)

com o homem (que quer ser mais que criatura),

é a limitação do homem a ser histórico: ele nasce e morre.

Essa inacessibilidade do Deus eterno, ou totalmente outro, ou mysterium tremendum, ou preocupação última, marcam também o apóstolo Paulo.

e o marcam a tal ponto, de do meio de sua poesia sobre o amor dizer que “o nosso conhecimento é limitado, e limitada é a nossa profecia”, em especial porque “agora vemos em espelho, de maneira confusa, mas, depois, veremos face a face. Concluindo com a ênfase: “meu conhecimento é limitado, mas, depois, conhecerei como sou conhecido”.

Paulo faz questão de enfatizar a limitação do seu conhecimento. Faz questão de realçar sua própria distância “do objeto” do conhecimento. E faz questão de realçar tudo isso dentro da poesia sobre o amor.

Paulo reconheceu que a coesão de uma comunidade acontece mesmo no amor, não na conformação a uma verdade-ordem-realidade, porque o conhecimento, ao menos por hora, é limitado, nossa visão é por reflexo em um espelho, de maneira confusa. Por isso, o amor é o caminho mais excelente que a profecia-conhecimento.

E é pelo amor, que a comunidade se torna cada vez mais penetrável pelo Espírito Santo.

É o amor que forma uma comunidade sensível e audível ao Espírito Santo que vivifica a letra, frutifica na vida de cada um, forma a imagem de Jesus em cada um.

Isso quer dizer que Paulo desprezou o conhecimento? Não! Isso quer dizer que ele o colocou no seu devido lugar: a limitação da ciência, do saber, do compreender e o aspecto provisório das nossas teologias e construções “sobre o alicerce que é Cristo”. Ele sabe que tudo será passado no fogo, e as construções serão provadas. Os construtores serão poupados, mas as construções serão passadas no fogo, de modo que de algumas, pouco restarão.

acredito na contribuição de Heidegger,

acho de uma relevância ética e política essa sua convicção, postergada por Gadamer, Vattimo, Derrida, Ricoeur e muitos outros e outras… de que para uma convivência cada vez menos violenta, faz-se necessário uma virada hermenêutica, um enfraquecimento do pensamento, uma conscientização de que estou na história e falo sempre mediado e atravessado por ela, me colocando sempre em diálogo com o outro…

Mas, como um bom protestante,

acredito que eles estão falando e desenvolvendo a partir do paradigma filosófico, algo que faz parte da compreensão e contribuição da própria Bíblia: o testemunho de fé autoritativo dentro da minha tradição protestante.

Percebo essa compreensão dentro da própria inteligência dos irmãos e irmãs de fé,

vejo essa semente do pensamento fraco dentro da própria tradição bíblica,

acho que os filósofos perceberam algo que narrado de formas míticas e poéticas na Bíblia, pode trazer justiça, paz e alegria para o mundo…

o que para a minha comunidade chama Reino de Deus.

mas é óbvio,

tudo isso é uma interpretação.

Minha visão é por reflexo, almejando ver cada vez melhor, até que conhecerei como sou conhecido — participarei do conhecimento do Eterno.

e se você não concordar, ta bem, vamos conversar, tentar partilhar paradigmas, e tudo isso a partir da escolha do caminho mais excelente:

o amor, que é

paciente,

prestativo,

não invejoso,

não ostentador,

não orgulhoso,

não inconveniente,

não interesseiro,

não irritadiço,

não rancoroso…

NOTA

[1] VATTIMO, Gianni; PATERLINI, Piergiorgio. Não ser Deus: uma autobiografia a quatro mãos. Petrópolis, RJ: Vozes, p.55, 2018. Há algumas outras citações ao longo do texto, mas tendo em mente o estilo e a proposta do texto, e favorecendo sua fluidez, elas foram adaptadas e não referenciadas aqui.

Israel Vieira Magalhães. Bacharel em Teologia pela FLAM, Especialista em Ciências da Religião e Ensino Religioso pela FTSA, Mestrando em Teologia Sistemático-Pastoral na PUC-RIO, e pastor de jovens da Igreja Batista do Meier.

Veja aqui outro artigo do HTM em que discutimos, com outra abordagem, a temática da imagem que temos de Deus e o fundamentalismo religioso.

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