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NÃO SEJAM COMO OS FARISEUS!

Houve Tarde e Manhã

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Série exposições em Mt 6.1–18

"Quem é você?
Quase ninguém vê
Quem se deslumbra com plumas de fibra a não ser você?
Quem é você?
Só Deus pra saber
Volta pra vida e aterrissa pra gente te ver"

Genérica, Banda Resgate

Há alguns dias comecei (finalmente!) a fazer terapia. Em uma das sessões, após um tempo desabafando minhas frustrações, meu terapeuta falou: “tenho impressão que, em algumas das suas relações, você constrói personagens de si mesmo para se relacionar”. Refletindo um pouco nos últimos dias, vi que faz sentido, em relação a alguns ambientes. Por medo ou por insegurança, esse é um mecanismo de autopreservação, mas que pode gerar diversos problemas. Penso que esse mecanismo é cada vez mais comum e natural no mundo contemporâneo. Eu não estou sozinho nessa.

Não quero falar de um mundo ilusório, mas real. Portanto, é claro que o medo tem valor, inclusive, evolutivo de sobrevivência; que ninguém é brutalmente sincero o tempo todo; que só é possível se relacionar, em alguma medida, com partes da totalidade que as pessoas são; e que todos escondem, em algum momento, partes de si que podem lhe colocar em risco. Mas não é desses contextos que estou tratando. A questão é que, por diversas razões, agimos de forma a, deliberadamente, falsear a realidade ou selecionar somente aquilo que é interessante para mostrar nas nossas relações. As redes sociais são, basicamente, o ambiente onde isso acontece sistematicamente. É inevitável. Postar algo (assim como escrever algo) é escolher ignorar um mar de outras coisas.

Vivemos em uma sociedade em que se mede o valor de alguém por meio do que ela aparenta. Por exemplo, hoje, as redes sociais são determinantes para contratação de um funcionário ou sua permanência na empresa. [1] Não só isso, os algoritmos existem para “tornar relevantes” as pessoas que mais se engajam nas redes. E o que se faz nas redes sociais se não construir uma imagem seletiva de quem eu sou? Querendo ou não, vivemos num grande baile de máscaras e nós as escolhemos de acordo com o que o mercado da moda diz que é tendência e tem valor.

Da mesma forma, nossos ambientes religiosos são muito performáticos. A boa oração segue um certo padrão estético. O mesmo pode se dizer a respeito das pessoas reconhecidamente santas ou das boas músicas. Em certos ambientes, o pregador bom usa terno e gravata e prega expositivamente. Em outros, usa um tênis colorido, calça skinny, é tatuado, tem barba grande e tem uma linguagem descolada. A grande questão não é a estética em si, num primeiro momento, mas torná-la a régua que regula o valor das pessoas. Se você não tem a performance esperada pela religião, você é rechaçado.

Foi em um contexto semelhante a esse que Jesus disse:

“Tenham [vocês] o cuidado de não praticar suas ‘obras de justiça’ diante dos outros para serem vistos por eles. Se [vocês] fizerem isso, vocês não terão nenhuma recompensa do Pai celestial.” Mateus 6.1

Como indicado em Mt 5.20, após ter contraposto a justiça dos discípulos com a dos mestres da lei (5.21–48), Jesus passa a fazer o mesmo com a dos fariseus (6.1–18). Este versículo serve de introdução e resumo desse novo bloco do Sermão do Monte. O texto se trata de um alerta do mestre aos seus discípulos para que resistissem à tentação da busca por visibilidade em suas ações; quem for seduzido (como os fariseus), não receberá a recompensa celestial do Pai do céu no Grande Dia.

Ao ler essas palavras, sinto como se o mundo em que vivemos fosse projetado por esses fariseus, pois o que importa não é a realidade em si, mas sua projeção, a imagem que se constrói a partir dela. Fazemos tudo para sermos vistos pelos outros, consciente ou inconscientemente. As fronteiras entre o que é público e o que é privado se esfacelaram diante do mar de câmeras que nos cercam. E tanto a religião, como o ambiente não religioso, são lugares propícios para a hipocrisia. Nossa vida é uma peça de teatro aberta ao público.

O que será, então, que Jesus diria a nós? Como viver uma espiritualidade cristã autêntica no contexto contemporâneo? Vamos analisar Mt 6.1–18 e tentar discernir, a partir do texto, aplicações práticas.

NÃO SEJAM COMO OS HIPÓCRITAS

Há três tensões importantes em todo o trecho: céu e terra, o Pai e “os outros” e presente e futuro. Além disso, analisando o bloco, fica evidente uma estrutura que se repete três vezes, mudando somente a “obra de justiça” que Jesus está se referindo: esmola (6.2–4), oração (6.5–6) ou jejum (6.16–18). O trecho de 6.7–15 funciona como um grande parênteses, uma quebra da estrutura que expande o trecho sobre oração para incluir a oração dos discípulos de Jesus em contraposição não aos fariseus, mas aos pagãos. Por isso, analisaremos esse trecho à parte, no terceiro artigo desta série.

Podemos unir os trechos de 6.2–4 (e — esmola), 6.5–6 (o — oração) e 6.16–18 (j — jejum) da seguinte forma:

1) Quando você der esmola/orarem/jejuarem

2)(e) não anuncie isso com trombetas, como fazem os hipócritas nas sinagogas e nas ruas / (o) não sejam como os hipócritas. Eles gostam de ficar orando em pé nas sinagogas e nas esquinas / (j) não mostrem uma aparência triste como os hipócritas, pois eles mudam a aparência do rosto

3)(e) a fim de serem honrados pelos outros / (o) a fim de serem vistos pelos outros / (j) a fim de que os homens vejam que eles estão jejuando

4) Eu lhes garanto/asseguro/digo verdadeiramente que eles já receberam sua plena recompensa

5) Mas quando você der esmola/orar/Ao jejuar

6)(e) que a sua mão esquerda não saiba o que está fazendo a direita, de forma que você preste a sua ajuda em segredo / (o) vá para seu quarto, feche a porta e ore a seu Pai, que está no secreto / (j) ponha óleo sobre a cabeça e lave o rosto, para que não pareça aos outros que você está jejuando, mas apenas a seu Pai, que no secreto

7) E/Então seu Pai, que o que é feito em segredo/que no secreto, o recompensará.

Nessa união dos textos, vemos sete linhas na estrutura; sendo a 1, a 4, a 5 e a 7, praticamente idênticas, e a 2, a 3 e a 6 sendo muito parecidas, mas adequadas à obra de justiça específica a que se referem.

Nas linhas 1 e 5 (especificamente versos 2, 5, 6 e 16), aparece o advérbio de tempo “quando” (ὅταν), que indica uma realidade, e não a conjunção “se”, que indicaria uma possibilidade hipotética. No caso dos versos 3, 6 e 17, aparece a conjunção “mas” (δέ), que indica contraposição entre o que está dito nesses versos e o que foi apresentado nos versos anteriores (2, 5 e 16). Na linha 2, Jesus trata da postura com a qual os fariseus fazem suas obras de justiça, sempre começando com uma partícula negativa (“não”, μή; 2, 5, 16), que só se repete para enfatizar o contraste entre a postura deles e a dos discípulos (“não saiba” 3, “não pareça” 18). A partir desses elementos, é conclusivo que o mestre está instruindo (e convocando) seus discípulos a praticar corretamente (isto é, com a postura correta) a esmola, a oração e o jejum, e, como um bom professor, ele começa indicando como não fazer, ilustrando com maus exemplos. Ele está explicando como ter uma justiça muito superior à dos fariseus (5.20).

Ou seja, a esmola, a oração e o jejum são práticas que os discípulos têm em comum com a piedade farisaica, assim como a religiosidade não centrada no Templo de Jerusalém, (posteriormente) os encontros semanais em torno das Escrituras, a oração direcionada ao “nosso Pai celestial”, além da relação não violenta (e nem conivente) com Roma e da fé na ressurreição dos mortos, no mundo porvir e na existência de anjos. Serem vistos publicamente pelos homens (seja no ambiente religioso — sinagogas — ou secular — ruas/esquinas), na linha 3, e secretamente pelo Pai, nas linhas 6 e 7, são o contraste essencial e distintivo entre a postura dos fariseus e a desejada por Jesus de seus discípulos ao praticarem as mesmas obras de justiça. O problema, então, não é “o que” os fariseus faziam, mas “como” ou “porque” o faziam, com a finalidade de “serem vistos pelos outros”, como fica evidente na linha 3 — postura que Jesus resume como hipocrisia (ὑποκριταί, “hipócritas”; 2, 5, 16). Em outro texto encontrado exclusivamente em Mateus, Jesus esclarece a atitude destes que chama de hipócritas:

"Tudo o que [os mestres da lei e os fariseus] fazem é para serem vistos pelos homens. Eles fazem seus filactérios bem largos e as franjas de suas vestes bem longas; gostam do lugar de honra nos banquetes e dos assentos mais importantes nas sinagogas, de serem saudados nas praças e de serem chamados ‘rabis’.”

Mateus 23.5–7

Os fariseus atuavam buscando, enquanto recompensa, o reconhecimento humano e, como aparece na linha 4, Jesus afirma e reafirma com firmeza (ἀμήν, “amém”; 2, 5, 16) que eles encontraram o que buscavam, de forma imediata e plena. Há essa ênfase para defender que, o elevado status social que os fariseus haviam conquistado com sua “piedade publicitária”, visível e constatável a todos, não se comparava a recompensa, ainda invisível e por vir, dos “piedosos secretos” ou “silenciosos”. Diferentemente do que parecia naquele momento, aqueles receberam uma recompensa inferior (imediata, humana, terrena e perecível), enquanto estes receberão uma recompensa superior (futura, divina, celestial e imperecível), o Reino dos céus (5.20), onde está o Pai. Jesus diz o mesmo com outras palavras em outro momento:

“O maior entre vocês deverá ser servo.
Pois todo aquele que a si mesmo se exaltar será humilhado, e todo aquele que a si mesmo se humilhar será exaltado.”

Mateus 23.11–12

Então, resumo e parafraseio o bloco da seguinte forma: “meus discípulos, como judeus que vocês são, dêem esmola, orem e jejuem, mas de forma silenciosa diante dos homens e sincera diante de Deus, não buscando popularidade e fama, como fazem nossos acusadores. Assim, vocês serão reconhecidos e recompensados como filhos de Deus, não agora, mas na volta do Senhor. Esse é o único reconhecimento que importa e essa é a maior herança que se pode receber.” Ou seja, se em 5.43–48, o que revela a filiação divina, a natureza celestial e o direito à recompensa futura é amar o inimigo e orar pelo perseguidor, em 6.1–18 o que revela essas coisas são o desinteresse e a honestidade.

Somente com essa postura desinteressada e honesta que é possível, verdadeiramente, praticar a justiça de Deus e obedecer sua Lei, pois sem ela, as pessoas usam da justiça e da Lei como plataforma de promoção de injustiça em favor de seus próprios interesses vis (cf. 23.14, 23–24). Inclusive, em nome de uma maior piedade, rejeitam as instruções divinas (cf. 15.3–6). A justiça dos fariseus é pura hipocrisia, por isso, a justiça dos discípulos, para ser muito superior a deles, deve ser pura integridade. A diferença está no interior (15.7–20). Somente aqueles que foram santificados e purificados por Deus e receberam dele um coração de carne e o Espírito Santo são capazes de guardar fiel e integralmente sua justiça e herdar a promessa (Ez 36.24–28). O Reino dos céus, isto é, a comunhão eterna com o Pai, é a herança de Deus para seus filhos, aqueles que são íntegros como ele é, em uma relação sincera com ele e misericordiosa com o próximo.

JESUS E O MARKETING PESSOAL

Se Jesus fosse brasileiro e contemporâneo nosso, ele diria dos fariseus: “por fora, bela viola, por dentro, pão bolorento". Como não o é, diz que eles são como sepulcros caiados: bonitos por fora, mas por dentro estão cheios de ossos e de todo tipo de imundície (23.27). Os fariseus têm um coração que deseja distância do Pai em troca das riquezas terrenas (6.19–21), seu interior é cheio de trevas (6.22–23), são idólatras velados (6.24). Por fora, eles pareciam justos ao povo, mas por dentro estavam cheios de hipocrisia e maldade (23.28), de ganância e cobiça (23.25). A nós, leitores modernos, ressoa a lição de que “nem tudo o que reluz é ouro”. A bela estética pode esconder uma realidade interior horrenda. Como disse o amigo Fellipe dos Anjos numa excelente pregação sobre este tema: “hipócritas também oram”. [2]

Performance e estética servem de capital religioso. As pessoas se portam de certo jeito para serem aceitas pelo grupo e serem reconhecidas enquanto alguém de valor. Parecer alguém santo ou espiritual é útil e sedutor no ambiente religioso. Parecer alguém de sucesso também, em um ambiente secularizado e mercadológico. Somos a sociedade do marketing pessoal, da efervescência do coaching, dos influencers digitais, das fórmulas de sucesso. Somos a religião das megachurch, dos pregadores influencers, do “pode ou não pode”, do moralismo, do alinhamento ao poder político. A religião e a sociedade constroem padrões que lhes são interessantes e nos obrigam a adequarmo-nos, se não, acabamos marginalizados e subvalorizados.

Enquanto os fariseus se diziam os legítimos descendentes de Abraão e filhos do Eterno, e, próximo ao período tardio de escrita do livro de Mateus, expulsaram os judeu-cristãos das suas sinagogas como hereges, Jesus e seus discípulos reafirmaram que o filho ou filha de Deus não é o que atende a certa performance religiosa, mas o que ama ao Pai e ao próximo verdadeiramente. Isso é imiscível a partir de critérios objetivos e humanos, o que é inaceitável para os projetos religiosos de controle. A instrução de Jesus é “saia desse grande baile de máscaras, porque apesar de estarem, teoricamente, celebrando a Deus, eu e meu Pai não temos parte com esse baile”.

Nosso mundo, tanto nos ambientes religiosos quanto seculares, é movido pela estética, pelas imagens, assim como eram os fariseus que perseguiram Jesus e seus discípulos. Por isso, saiba que, talvez, por não entrar no jogo da hipocrisia e denunciá-lo, sejamos rejeitados e expulsos desses ambientes. Entretanto, Deus é quem nos enxerga para além das máscaras e ele também está fora do baile. Ele também foi rejeitado e expulso, e nos acolhe do lado de fora, nos reconhece e nos recompensa. O que nos distingue enquanto filhos de Deus não é a performance pública ou as publicações nas redes sociais, mas o amor e a fidelidade a Deus e ao próximo com integridade e honestidade. Preze por isso e serás recompensado/a com a eternidade.

Acabamos aqui o primeiro dos três artigos desta série. No próximo artigo, olharemos com atenção as obras de justiça descritas e suas implicações para nossa espiritualidade hoje.

NOTAS

[1] Sobre isso, veja a ótima esquete humorística feita pelo ator Pedro Ottoni aqui.

[2] Veja a pregação “Santidade Além da Estética” em: https://www.youtube.com/watch?v=bSWt98b8rLg; veja também um artigo dele em seu medium com tema parecido: https://dosanjosfellipe.medium.com/o-marketing-feiticeiro-6e9933c742cb.

Davi Ramos Bahiense. Bacharel em Teologia pela FTSA e pastor na Igreja Evangélica Nazareno de São José dos Campos.

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Somos um grupo de amigos pastores, comprometidos com uma teologia de fronteira, latino-americana, entre a academia e a pastoral.