SOBRE A MISSÃO DA IGREJA: PENSAR BEM PARA AGIR MELHOR (Parte 1)

Houve Tarde e Manhã
7 min readOct 14, 2021

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A Fundação de São Paulo por Oscar Pereira da Silva — Coleção Museu Paulista da USP

PRÁXIS E PRÁTICA

Práxis é um termo da área dos estudos sociais muito utilizado e que significa, basicamente, uma prática refletida/consciente. Se não refletimos sobre nossa prática, tornamo-nos meros reprodutores daquilo que nos ensinaram, sem avaliar se é o que devemos realmente fazer ou não, ou se é a prática mais adequada ou não dentro do contexto atual. Geralmente não vemos a importância de pensar sobre o que estamos fazendo porque pressupomos que tudo sempre foi feito da forma que fazemos hoje e/ou porque é a única forma de se fazer o que fazemos. Esse tipo de pressuposição é muito comum no ambiente eclesiástico e se aplica também no tema da missão da Igreja.

A impressão que temos é que sempre se fez missões do mesmo jeito e só existe esse jeito de fazer missões, que é: enviar missionários para outro lado do mundo, especialmente África e Ásia, fazer evento evangelístico de impacto, ensinar as quatro leis espirituais e chamar os amigos para irem a igreja (e se, mediante o apelo do pregador, forem até a frente, levantarem as mãos e, supostamente cumprindo Romanos 10.9, “aceitarem” a Jesus, o convite foi bem sucedido). Mas nem sempre foi assim que se entendeu e praticou missões. Precisamos lembrar e reafirmar que toda leitura bíblica e toda percepção sobre um tema teológico têm uma raiz num tempo específico, num espaço específico e numa tradição específica.

Por exemplo, para os reformadores, os textos de Mateus 28.19 e Atos 1.8 já haviam sido realizados. Portanto, não existia mais a necessidade de evangelização ou de enviar missionários a “todas as nações” e “até os confins da terra”. Os reformadores estavam, nesse período, preocupados principalmente em sobreviver e se estabelecer na Europa. Por isso, os católicos tomaram a frente das iniciativas missionárias no século XVI.

MISSÕES E COLONIZAÇÃO

O termo “missão” é um termo de origem militar e não se encontra nas Escrituras. Inácio de Loyola foi quem cunhou/popularizou o termo aplicado ao contexto cristão e os jesuítas passaram a ser chamados “missionários”, com a missão de evangelizar/cristianizar os povos colonizados. Quanto ao termo “missão” no ambiente cristão e seu significado, o missiólogo sul-africano David Bosch informa que:

“Até o século 16 o termo era usado exclusivamente com referência à doutrina da Trindade, isto é, ao envio do Filho pelo Pai e do Espírito Santo pelo Pai e pelo Filho. Os Jesuítas foram os primeiros a usá-lo em termos da difusão da fé cristã entre pessoas (incluindo protestante) que não eram membros da Igreja Católica. Nesta nova acepção, ele estava intimamente associado à expansão colonial do mundo ocidental no que mais recentemente tornou-se conhecido como terceiro mundo (ou, às vezes, Mundo dos Dois Terços).” BOSCH, p.17

Os jesuítas foram proeminentes missionários católicos na colonização especialmente das Américas. A evangelização era um dos dois braços da expansão territorial europeia. O domínio vinha ou pela religião ou pela espada (as opções eram: conversão, escravidão ou morte). Como disse o Pe. José de Acosta, teórico da missão na colônia no século XVI: “É necessário que andem juntos o soldado e o sacerdote”. Ou como disse um colono espanhol da mesma época: “A voz do evangelho se escuta somente lá onde os índios também escutam o estrondo das armas de fogo” (BOFF, p.22). Desse modo, como ressalta a teóloga brasileira Regina Sanches,

“A prática missionária, além de viabilizar a expansão da fé cristã tanto católica como protestante no mundo, deixou como legado as marcas da dominação, do suporte a projetos político-econômicos e da recorrente imposição cultural.” SANCHES, p.59

O teólogo brasileiro Leonardo Boff esclarece que:

“À exceção dos missionários religiosos, nos quais constatamos um potencial fantástico de utopia e de generosidade, a grande maioria [seja soldados, colonizadores, funcionários, plebeus, nobres, criminosos, prostitutas, fidalgos ou doutores] queria mesmo era enriquecer. […] Mas para todos era evidente, e nisso sem nenhuma exceção, nem dos melhores missionários como Bartolomé de Las Casas ou Antônio Vieira: a América Latina devia ser agregada aos costumes políticos e culturais europeus e incorporada a fé cristã. O orbe cristão constituía a única ordem desejada, concreta e historicamente, por Deus. […] Fora dela não há civilização (humanização) que mereça tal nome, nem salvação eterna possível.” BOFF, p.17–18.

Os povos originários das Américas e os africanos eram vistos por alguns como corpos sem espírito (Hegel, importante filósofo germânico do século XVIII, fez coro a essa perspectiva). A civilização e cultura europeia levavam o espírito para eles, fazendo-os virarem humanos. Hoje muitas pessoas vêm, ingenuamente, da mesma forma. Tirando a força militar, nós devemos enviar missionários para levar nossa cultura e o espírito para os povos miseráveis da África e da Ásia (obviamente essa postura é inconsciente ou velada, na maioria das vezes). Uma visão aparentemente não tão violenta, mas igualmente colonizadora, por mais que se tenha boa intenção.

Esse tipo de prática missionária, guiada por uma mentalidade colonizadora, foi aplicada em nosso país. Por que usamos tão poucos instrumentos regionais nos nossos tempos de louvor? Por que os pregadores aprenderam a usar terno e gravata mesmo em um país tropical? Por que até hoje os cabelos afro são vistos como sinal de falta de cuidado e santidade? Isso aconteceu conosco e muitas vezes acontece com os outros, promovido por nossas iniciativas missionárias, cheias de boa intenção, mas subservientes a uma mentalidade ainda colonizadora e arrogante (que pressupõe uma superioridade cultural do ocidente). Nossa cultura se torna o próprio evangelho. Os acessórios se tornam a coisa em si. [1]

Os missionários católicos pregavam e realizavam missas em latim com índios e africanos que não entendiam absolutamente nada, nem mesmo do português, mas isso era relatado como sucesso missionário para a capital. Estima-se que, até 1584, os jesuítas tenham batizado mais de 100 mil índios no Brasil. Os números eram extraordinários. A estratégia funcionava. Esse é o tipo de relatório preocupado somente com os resultados, com eficácia, nada incomum nos nossos dias. A questão é: se não refletirmos sobre o que praticamos e como praticamos, mesmo que tenhamos intenções genuínas, vamos reproduzir estratégias e lógicas potencialmente problemáticas na nossa atuação missionária.

DESENVOLVIMENTOS POSTERIORES DA NOÇÃO DE MISSÃO [2]

Em um contexto em que se cria que pessoas eram cristãs por estarem na igreja e por nascerem em um país cristão, os pietistas começaram a falar sobre a necessidade de conversão pessoal a Deus.

Somente no século XIX que John Wesley e outros começaram a pregar em praças públicas “evangelisticamente” e disse sua famosa frase “minha paróquia é o mundo”. Antes disso, se pregava somente nas igrejas.

Posteriormente, o inglês William Carey foi até a Índia pregar o Evangelho e convocou os batistas a se engajarem em missões. Ele foi o popularizador do engajamento em missões transculturais de forma a se adaptar à cultura à qual se está inserindo. Fundou escolas e traduziu a Bíblia nos lugares onde foi. Fundou escolas missionárias e juntas de missões. Ele é conhecido como pai das missões modernas.

Anos depois, no fim do século XX, Billy Graham passou a pregar em rádios, tevês e estádios, propondo uma “decisão por Jesus” a seus ouvintes. Prática que muitas igrejas praticam até hoje convidando a “aceitar a Jesus” e ir até a frente do palco para confirmação desta decisão. Com isso, os números de Billy Graham eram assombrosos, o que gerou grande influência do evangelista no meio batista, em particular, e evangelical, em geral. [3]

Foi a prática de Billy Graham que nos fez ler Romanos 10.9 da forma que comumente se lê hoje, identificando a fala de Paulo com a prática do pregador americano. Nem sempre o texto foi lido assim. Nem sempre as coisas foram feitas assim. Nem sempre a conversão de alguém foi associada a uma “decisão por Jesus”. Será que esse é um formato ainda pertinente? Será que é a única forma de falar de conversão? Como se falava de conversão antes disso? Há outras abordagens bíblicas para esse tema?

Enfim. Esse é um exemplo de falta de práxis. A evangelização nos moldes da colonização também. Tendo isso em mente, quero convidar você a refletir sobre a nossa prática missionária ao longo dos próximos textos. No próximo, a pergunta que me move será: qual versículo melhor expressa a missão da Igreja?

NOTAS

[1] Uma palestra simples e introdutória sobre essa discussão é: “Evangelização ou colonização?” (veja a palestra completa aqui). Nessa palestra, Analzira Nascimento, uma das mais respeitadas missionárias e missiólogas do Brasil, resume em linguagem simples sua tese doutoral: “Missão e Alteridade: descolonizar o paradigma missiológico” (disponível aqui).

[2] Para maiores e mais detalhadas informações sobre o desenvolvimento do conceito de missões e temas subjacentes, indico o livro de David Bosch (referência na bibliografia), paradigmático nos estudos de missiologia contemporânea.

[3] Um exemplo claro desta noção do mecanismo da conversão é o trecho que viralizou da conversa entre o ex-candidato a presidente da república Cabo Daciolo e os dois anfitriões do Flow Podcast, Igor e Monark. Veja aqui.

BIBLIOGRAFIA

BOFF, Leonardo. América Latina: da conquista à nova evangelização. São Paulo: Editora Ática, 1992.

BOSCH, David J. Missão transformadora: mudanças de paradigma na teologia da missão. Leopoldo, RS; EST, Sinodal, 2002.

SANCHES, Regina Fernandes. Teologia da Missão Integral: História e Método da Teologia Evangélica Latino-americana. São Paulo: Reflexão, 2009.

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