SOBRE A MISSÃO DA IGREJA: PENSAR BEM PARA AGIR MELHOR (Parte 2)

Houve Tarde e Manhã
15 min readOct 14, 2021

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Imagem colhida na internet. Crédito não conhecido.

QUAL VERSÍCULO EXPRESSA A MISSÃO DA IGREJA?

Acostumados com uma metodologia hoje antiquada, sempre buscamos versículos bíblicos que sirvam de texto-prova para defender um certo ponto de vista teológico sobre algum assunto. Não é diferente no tema de missões. Comumente, quando se fala da missão da Igreja, a conversa gira em torno de Marcos 16.15 (ressaltando a expressão “ide”) ou de Mateus 28.19 (conhecido como a grande comissão).

“E disse-lhes: Ide por todo o mundo e pregai o evangelho a toda criatura.” Marcos 16.15 (ARA)

“Ide, portanto, fazei discípulos de todas as nações, batizando-os em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo;” Mateus 28.19 (ARA)

Esses são dois dos vários textos dos quais poderíamos deduzir a missão da Igreja. Outros menos comuns, mas também presentes nos evangelhos e Atos, são Lucas 24.47–48, João 20.21 e Atos 1.8. Entretanto, é importante perceber que esses textos definitivamente não dizem a mesma coisa, apesar de algumas pessoas afirmarem isso com uma série de deduções e explicações que vão para além daquilo que está dito neles.

“É fácil perceber que cada um desses textos possibilita um resultado diferente para o enunciado definidor da missão da igreja. O registro de Mateus possibilita a fórmula “fazer discípulos”, implicando necessariamente um ensino detalhado de todas as ordens de Jesus. Marcos indica a proclamação do evangelho como tarefa essencial, e, nesse caso, o conteúdo do kerigma é a boa notícia da chegada do reino de Deus. Lucas também sublinha a proclamação, mas para ele o conteúdo do kerigma é menos abrangente, restrito a convocação ao arrependimento para perdão dos pecados. João abre um leque extraordinário quando afirma que a missão da igreja deve ser derivada da missão de Jesus […]. Por fim, em Atos, o evangelista Lucas aponta na direção do testemunho a respeito da pessoa e obra de Jesus como aspecto essencial dessa missão.” (KIVITZ, p.54–55). [1]

Se os textos não falam a mesma coisa, porque alguns escolhem somente um para deduzir a missão? Difícil encontrar um critério consistente e convincente para fazer essa escolha. Geralmente simplesmente se pressupõe que o texto A ou B é o mais adequado. Ou seja, o critério é uma percepção particular relativa a ênfase de cada contexto eclesiástico que vai mudando com o passar do tempo, o que seria um problema para a compreensão de algo tão importante (o que seria de um soldado que entendeu errado, ou sem clareza total, a missão para a qual seu superior o enviou?). Como reduzir a missão da Igreja a uma fórmula simplória e única do tipo “fazer discípulos” ou “pregar o evangelho”, vista essa complexidade dos textos evangélicos e seus respectivos focos? Impossível! Há pelo menos dois problemas nessa redução.

Em primeiro lugar, nela geralmente não se dá a devida atenção ao contexto imediato dos versículos (p.ex. Mt 28.18–20; Mc 16.15–18) e suas implicações para compreender a missão da Igreja. Entretanto, mesmo os que dão atenção, geralmente caem num segundo problema.

Em segundo lugar, essa redução está associada, em algum nível, com uma concepção equivocada a respeito do que são os evangelhos. Eles não são textos historiográficos modernos que relatam objetivamente fatos históricos importantes, com diferença simplesmente na linguagem, por buscar comunicar eficazmente com os diferentes públicos-alvo. A sua preocupação não é provar verdades doutrinárias e científicas postas em cheque por teólogos liberais do fim do segundo milênio. Os evangelhos são textos narrativos com preocupações pastorais, escritos por e para comunidades em contextos distintos, é assim que creio ser melhor lê-los. Portanto, não se deve menosprezar as particularidades deles, nem descolá-los da realidade histórica vivida pelas comunidades que estão “por trás dos textos”. Essas narrativas têm, entre outras particularidades, construções literárias distintas e teologias diferentes, apesar de serem (na minha opinião) convergentes e não necessariamente conflitantes. Afinal, usam muitas fontes em comum e contam, fundamentalmente, uma mesma narrativa principal; por isso foram incluídas e unidas no cânon bíblico pela Igreja.

Pensando no objetivo do artigo e levando em conta a tradição a partir da qual escrevo, abrirei mão da possibilidade de que esses versos tratem exclusivamente da missão dos Apóstolos [2] e tomarei aqui como pressuposto que os textos evangélicos de envio dos discípulos são adequados para discernir como os evangelistas percebiam a missão presente das suas comunidades e, em geral, da Igreja de Jesus. Logo, creio que seja possível resumir a missão da Igreja hoje a partir de uma leitura convergente do versos finais dos evangelhos, sem cair na redução que acabei de problematizar.[3] O ponto que une os diversos textos (Mt 28.19; Mc 16.15; Lc 24.47–48; Jo 20.21; At 1.8), evidentemente não é a tarefa em si dos discípulos, antes, é a forma como os evangelistas concebem Jesus e associam literariamente essa concepção a tarefa a ser executada por sua comunidade. Dito de outra maneira, cada autor desenha o envio da Igreja sob os moldes do desenho particular que faz de Jesus. Nestes textos, a missão da Igreja é desenvolver o ministério terreno do Messias, expandindo-o para além das fronteiras que Jesus respeitou, começando, desse modo, uma nova etapa na história da salvação.

JESUS E A MISSÃO DA IGREJA EM MATEUS

Em Mateus, Jesus é a luz que brilha na Galileia (4.13-16, cf. Is 9.1-2), enquanto seus discípulos são a luz que brilhará no mundo (5.14-16) como uma espécie de remanescente fiel de Israel. Uma das formas de resumir o ministério jesuânico é ensinar nas sinagogas, pregar o evangelho do Reino e curar doenças e enfermidades na região da Galileia (4.23-24, 9.25) com autoridade (7.29, 9.6-8, 21.23–24,27). Ele compartilhou essa autoridade com os Doze (10.1a) para expulsar demônios, curar e pregar a proximidade do Reino (10.1b,7) às ovelhas perdidas de Israel, exatamente como ele fez (4.17,24). Eles receberam o comando de, como o Senhor em seu ministério, curar enfermos, ressuscitar mortos, purificar leprosos e expulsar demônios (10.8).

Após a ressurreição, mais uma vez, os discípulos (agora sem Judas) receberam um comando, porém com três novidades: 1) Jesus deixou de ter uma autoridade vinda do céu (cf. 21.24,27) e exercida na terra (cf. 9.6), e passou a ter toda a autoridade na terra e no céu (28.18); 2) seus discípulos não deveriam mais se restringir a região da Judeia (28.19a) até que viesse o fim (24.14);[4] 3) e, pela primeira vez, Jesus os ordena que batizem e ensinem (isto é, façam discípulos), sendo o conteúdo desse ensino as palavras de Jesus (28.20a). Ou seja, nesse momento da história da salvação, no que diz respeito a atuação dos discípulos, substitui-se a ênfase na pregação e na cura (pré-crucificação), pela ênfase no ensino (pós-ressurreição).

No evangelho de Mateus, Jesus é mestre discipulador com 5 grandes blocos de ensino (5–7, 10.5–42, 13.1–52, 18.1–35, 23–25). Os discípulos agora tornaram-se mestres discipuladores (ou discípulos-discipuladores) que ensinam as nações a “construírem sua casa sobre a rocha” (7.24–27), não praticando “o que disseram aos antigos” (5.21,27,31,33,38,43), mas as palavras de Jesus (5.22,28,32,34,39,44). Não é atoa o acréscimo de que Jesus deu esse último comando não só na Galiléia, mas em um monte de lá (28.16, cf. Mc 16.7). É como se o primeiro bloco de ensino de Jesus fosse recomeçar, agora com a Igreja na posição de mestre e as nações na posição de discípulos.

JESUS E A MISSÃO DA IGREJA EM MARCOS

Em Marcos, Jesus foi pregando por toda a Galiléia o evangelho de Deus, que consistia em arrependimento e fé diante da proximidade do Reino de Deus no tempo determinado (1.14–15). Essa pregação foi acompanhada de um exorcismo (1.21–28) e de uma cura (1.29–31). Ambos se repetiram outras vezes (1.32–34), pois Jesus tinha autoridade (1.22,27). Essa autoridade ele compartilhou com seus discípulos, enviando-os para pregar o arrependimento, praticar exorcismos e curar pessoas (3.14–15, 6.7,12–13). Após a ressurreição, Jesus envia seus discípulos para pregarem o evangelho (16.15), praticar exorcismos (16.17) e operar maravilhas (16.18) - os sinais confirmam a palavra. De fato, após a exaltação do Senhor (16.19), isso aconteceu (16.20).

Mesmo que o capítulo final deste evangelho seja visto como um acréscimo posterior a redação original, a lógica não é quebrada. No evangelho de Marcos, Jesus é, principalmente, pregador e taumaturgo, foi para isso que Jesus veio a terra (1.38–39). Os discípulos são enviados para ser exatamente a mesma coisa, e ele os acompanhava nessa missão (16.20).

JESUS E A MISSÃO DA IGREJA EM LUCAS-ATOS

Jesus é aquele que tem autoridade na terra dada pelo Pai para perdoar pecados (Lc 5.5.20–21,24, 7.47–49); ele não veio chamar justos, mas pecadores ao arrependimento (Lc 5.32). Aquilo que Jesus concede e a convocação que ele faz é o que João Batista havia pregado, preparando sua primeira vinda (Lc 1.77, 3.3–6, At 13.24, 19.4), e é o que os discípulos testemunham em todas as nações após a Sua ressurreição (Lc 24.47). A mensagem profética, segundo os moldes do Antigo Testamento, era exatamente essa, arrependimento para perdão de pecados (que envolve o fim do exílio, o retorno da gloria de Deus ao Templo e sua vinda como Rei).[5] A inovação da mensagem no pós ressurreição é que Jesus é o mediador do perdão e crer nele é o arrependimento (“voltar-se para Deus”, cf. At 3.19).

Seguindo os moldes de 2 Reis 2, Jesus, assim como Elias, ascende ao céu, e seus discípulos, assim como Eliseu, permanecem em terra até receberem a vestimenta dada pelo seu mestre, isto é, até serem “revestidos com o poder” (Lc 24.49) que estava sobre seu mestre, e então sejam capazes de fazer as mesmas coisas: pregar e operar maravilhas, como profetas carismáticos. O espírito profético de Jesus repousa sobre a Igreja (parafraseando 2 Rs 2.15), ela, se é a principal herdeira de seu espírito profético (parafraseando 2 Rs 2.9).

No evangelho de Lucas, há um plano divino em andamento e que tem três etapas: Israel — Jesus — Igreja. Jesus representa Israel, e a Igreja passa a representar Jesus. Quem recebe ou rejeita os enviados de Jesus estão fazendo isso com o próprio Jesus e, consequentemente, com aquele que o enviou (9.48, 10.16). Perseguir a Igreja é perseguir a Jesus (At 9.5, 26.14–15). Por isso, há um esforço em Atos para mostrar que aquilo que aconteceu na vida de Jesus, aconteceu na vida da Igreja (comparar Lc 3.21–22 com At 7.55–56; Lc 23.34,46 com At 7.59–60; Lc 7.14–16, 8.49–56 com At 9.37–42; e Lc 9.51, 13.22, 22.47ss com At 19.21, 21.15ss). Quem cura não são os discípulos, mas Cristo por meio dos discípulos (cf. 3.6,16; 4.10–30, 9.34).[6]

No evangelho, Jesus trilha o caminho, no Espírito Santo, até Jerusalém. Em Atos, a Igreja trilha o caminho, no Espírito Santo, de Jerusalém até os confins da terra. A Igreja continua em Atos, aquilo que Jesus começou a fazer e ensinar no evangelho (At 1.1–2). Em Lucas, Jesus é profeta carismático, poderoso em palavras e obras (Lc 24.19), na linhagem dos antigos profetas de Israel (11.47–51, At 7.52). Seus mártires (mártyras, testemunhas) são também profetas carismáticos, como indica Lucas 24 e mostra o livro de Atos.

JESUS E A MISSÃO DA IGREJA EM JOÃO

Por fim, e mais objetivamente, em João, Jesus é o Enviado do Pai (cf. 3.17; 5.43; 8.42; 16.27–28; 17.8) com o Espírito Santo (1.32–33) para salvar e perdoar. A Igreja, após a ressurreição, é enviada ao mundo por Jesus como sua representante, com o Espírito Santo (17.18; 20.21–22) e com poder inclusive de perdoar pecados (20.23). Logo, o que fizeram com Jesus farão com a Igreja, e o que fizerem com a Igreja estarão fazendo a Jesus (15.18–21,17.14–16), como o que faziam a Jesus faziam ao Pai.

É claro que não fui exaustivo (especialmente em João na qual a questão é mais óbvia), mas espero ter conseguido demonstrar que: apesar de serem textos de envio, o que os une consistentemente não é uma fórmula objetiva simplista sobre qual a tarefa específica dos enviados e a missão específica da igreja como “fazer discípulos”, mas uma mesma estrutura que está presente em todos os textos. Agora, portanto, repito: a missão da Igreja é desenvolver o ministério terreno do Messias, expandindo-o para além das fronteiras que ele respeitou, começando, desse modo, uma nova etapa na história da salvação. Creio que essa é uma afirmação mais segura, a partir dos “dados bíblicos” colhidos nos textos de envio. O foco não está em uma tarefa específica, mas na obra e na pessoa de Jesus.

Desse modo, percebemos que, por exemplo, os textos evangélicos de seguimento ou de convocação são úteis também para falar da missão da Igreja, por que o que o Mestre espera dos seus discípulos é que o sigam. Isto é, o imitem, caminhem o seu caminho, vivam como ele vive. Uma dimensão da missão da Igreja é negar a si mesma e tomar a sua cruz (Mt 16.24, Mc 8.34, Lc 9.23), como o fez seu Mestre.

QUAL TAREFA EXPRESSA A MISSÃO DE JESUS?

Mas um problema permanece, um soldado precisa saber bem e com exatidão sua missão para cumpri-la com excelência. Semelhantemente, os encarregados/enviados/representantes reais antigos tinham indicações claras do encarregador/enviador/rei das suas limitações e do seu propósito enquanto representante autorizado (eles não falavam em nome de si mesmos, mas em nome daquele a quem representavam).

Pensando nisso, poderíamos procurar os textos programáticos de Jesus nos evangelhos para tentar resumir a sua missão e, consequentemente, a missão da Igreja. Entretanto, as afirmações programáticas, como os textos de envio, mudam de acordo com a ênfase de cada evangelista e do contexto imediato até dentro do mesmo evangelho: Jesus não veio abolir o Antigo Testamento, mas cumpri-lo (Mt 5.17); não veio para os que se acham justos, mas para os que se reconhecem pecadores (Mt 9.13; Mc 2.17; Lc 5.32); não veio trazer paz, mas a confusão “pré-apocalíptica” (Mt 10.34; Lc 15.51); veio para pregar a proximidade do Reino e expulsar demônios (Mc 1.38–39). Veio não para roubar, matar e destruir, mas para trazer vida abundante (Jo 10.10); não veio para condenar, mas para salvar o mundo (Jo 12.47); veio testemunhar da verdade (Jo 18.37). Ele não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate de muitos (Mt 20.28; Mc 10.45; Jo 12.27).

Além desses, há outros textos para deduzir a missão de Jesus. Por exemplo, os sumários de Mateus 4.23 e 9.35 (também Mt 11.1), que repetem que Jesus ia ensinando, pregando o evangelho do Reino e curando doenças e enfermidades. Há outros textos dos quais se poderiam deduzir a missão da igreja diretamente, como João 13.34–35, que diz que os discípulos de Jesus seriam reconhecidos como seguidores de Jesus se amassem uns aos outros como ele os amou. Enfim, isso tudo porque só abordamos os 4 evangelhos e Atos, fora o resto do Novo Testamento (p.ex. Ef 1) e das Escrituras (p.ex. Gn 12). O que os textos paulinos não falam nesses termos dos evangelhos, entretanto, sendo textos profundamente pastorais e eclesiológicos, não têm nada a dizer sobre a missão da Igreja? [7] Como ignorar, por exemplo, a função sacerdotal da Igreja (1 Pe 2.5,9, Ap 1.6, 5.10)? Qual a missão da Igreja enquanto Templo do Espírito (1 Co 3.16–17, 6.19–20) e Casa de Deus (2 Co 6.16, Ef 2.19–22, Hb 3.5–6, 1 Pe 2.5)? [8]

É pertinente admitir que essas são dimensões ou partes da missão da Igreja porque são dimensões ou partes da missão de Jesus (sem ignorar o fato de que essa continuidade não elimina as particularidades de Jesus e da Igreja). O ponto é: nenhuma tarefa específica é suficiente para resumir a missão da Igreja e abranger a sua totalidade no texto bíblico. Assim como na temática da salvação, a linguagem bíblica é plural na temática da missão. Inclusive, uma definição não tão restrita daquilo que entendemos por “missão da Igreja”, nos permite sermos mais ecumênicos, pois podemos destacar dimensões diferentes da missão de Jesus e da Igreja (como fazem os próprios evangelistas), sem romper com uma unidade real e saudável.

Diante disso, não creio que precisemos, necessariamente, abandonar o termo “missão” para falar daquilo pelo qual a Igreja está no mundo, e creio que os textos de envio são talvez os mais claros para falarmos dessa “missão”. Mas creio que precisamos, necessariamente, lê-los como dimensões dessa missão que o rei nos enviou enquanto seus representantes, não como um comando exato, restrito e completo de um general.

Levando em conta a prática da igreja e a necessidade de simplificação do discurso, creio ser a única fórmula pertinente, a ideia abrangente de: A MISSÃO DA IGREJA É CONTINUAR A MISSÃO DE JESUS ou, como exploraremos melhor no próximo artigo, A MISSÃO DA IGREJA É REPRESENTAR A JESUS. É como numa corrida de revezamento onde a corrida é uma só, a pista e a equipe também, mas Jesus começou e passou o bastão para nós continuarmos sua corrida no restante de pista e de tempo que faltam para a prova acabar. O versículo que melhor serve a essa definição é João 20.21: “Assim como o Pai me enviou, eu os envio”. A Igreja é chamada a imitar a Jesus, fazer o que ele fez e ser como ele é. Ou seja, a missão não é fazer discípulos, mas ser discípulo (e aqui menciona uma ênfase teológica muito presente na América Latina: ser cristão é ser missionário, a vida cristã é uma vida-em-missão).

Em minha opinião, se há um termo mais objetivo que possa resumir a obra de Jesus é o Reino de Deus — nisso não consigo (nem quero) esconder minha identificação com a teologia produzida a partir do solo latino americano. Jesus inaugurou, pregou e manifestou o Reino celestial na terra. A Igreja deve anunciar, sinalizar e expandir esse Reino na terra. Afinal, foi para isso que a humanidade foi criada. É sobre isso que tratarei no próximo artigo, a partir de um panorama bíblico sobre o Reino de Deus e suas implicações para pensar a missão cristã de maneira anti-colonial a partir da américa latina contemporânea.

NOTAS

[1] KIVITZ, Ed René. Novo Paradigma para uma missão relevante. in BITUN, Ricardo; RAMOS, Ariovaldo (org.). Lutando pela Igreja: reflexões e configurações de uma igreja relevante para o século XXI. São Paulo: Vox Litteris, 2012.

[2] Lendo naturalmente o texto de Mateus 28, é difícil defender que a fala de Jesus não foi direcionada especificamente aos Onze. Mesmo que se pressuponha que haviam outros discípulos e discípulas acompanhando os Onze na subida do monte na Galileia (o que não parece ser o caso vide 28.7,10,16 e comparando-os com Mc 16.7). É o grupo seleto que está em destaque na narrativa e parecem ser eles que cumprem ordinariamente essa função na igreja em Atos, texto no qual eles próprios, inclusive, definem suas funções a partir de outros termos (cf. At 6.2–4). É também entre eles que geralmente são destacados lapsos de incredulidade nos evangelhos, inclusive ao ver o Cristo ressurreto (cf. 16.14, Lc 24.38,41, Jo 20.27), apesar de, em alguns casos (compare Mc 4.10–13, 6.52 e 9.32 com Mt 13.11–18, 14.33 e 17.23 respectivamente), eles serem minimamente idealizados em Mateus (em Mc 7.18, 8.17–21 e Mt 15.16, 16.5–12 isso não acontece). Aliás a mesma palavra de Mateus 28.17 aparece em 14.13 para descrever uma atitude de Pedro. Nos outros evangelhos que essa ênfase nos Onze não é tão forte e, então, mesmo que exista uma relação direta entre o termo apóstolos (enviados, mensageiros) e o envio, é possível discernir que há diversos discípulos e discípulas sendo enviados pelo Cristo ressurreto ali.

[3] Esses textos do fim dos evangelhos trazem um comando direto dado pelo Cristo ressuscitado, imediatamente antes da sua ascensão, mostrando assim sua importância enquanto últimas palavras do Senhor na terra, e mostrando também as palavras de Jesus para a Igreja na etapa do plano eterno de Deus em que nos encontramos ainda hoje (depois do Pentecostes, antes da Parousia).

[4] “Ir” é um condicionante para o imperativo principal “fazer discípulos” (também em 9.13,18, 22.9, por exemplo). Não da para fazer discípulos de todas as nações sem ir para todas as nações. Ir faz parte da ordem, por isso não deve ser suavizado. A ideia aqui não é de discipulado de literalmente todas as nações que existem hoje. A maioria das nações que existem hoje ainda não existia no sec. I. O autor usa uma força de expressão e um termo genérico (“todas” e “nações”, como em 24.9, por exemplo) para convocar a comunidade de Mateus a deixar a Judeia e se espalhar corajosamente para todo lugar que houver possibilidade, visto a exclusão e perseguição (como foi com Jesus) que têm sofrido neste território. Os que rejeitaram Jesus rejeitam seus seguidores, mas em outros locais ele/eles será/serão acolhido/acolhidos e haverá mais salvação.

[5] Sobre isso veja WRIGHT, N.T. O dia em que a revolução começou: reinterpretando a crucificação de Jesus. Editora Chara, 2017.

[6] Discorro um pouco sobre a missão da Igreja como a continuação da missão de Jesus em Lucas-Atos no artigo “O Poder de Deus por meio de nós”.

[7] Na verdade, é possível associar os textos paulinos com a ideia de “fazer discípulos”, “pregar os evangelhos” e demais termos evangélicos se considerarmos a atuação mais específica do apóstolo Paulo e seus cooperadores (compare Mt 28.19–20 com At 14.21–22; compare Mc 16.15 com Cl 1.23, e também com At 20.24, Rm 15.15-16, 1 Co 1.23–24, 9.12–14, 15.11, 2 Co 1.19, 4.5, 11.4, Gl 2.2, 1 Ts 2.9, 2 Tm 4.2), não da Igreja como um todo. Essa, realmente, parece ter sido uma função designada originalmente as testemunhas oculares da ressurreição (cf. At 10.40-42, 15.7; 1 Co 15.1–11), mas na prática não parece ter se restringido a eles (cf. At 11.19–21; Fp 1.12–18, Ef 6.15), o que indica uma estrutura e atribuição de funções não muito rígida nos primórdios da Igreja, características comuns em um movimento orgânico.

[8] Um ótimo vídeo sobre essa dimensão da missão da Igreja enquanto ofertante de sacrifícios é este, do Rev. Gyordano.

BIBLIOGRAFIA

HOEFELMAN, Verner. A Missão de Jesus e a Missão da Comunidade no Evangelho de Lucas e em Atos dos Apóstolos. Revista Estudos Teológicos. Vol. 28, No. 1, 1988.

WRIGHT, N. T. Como Deus se tornou rei. Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2019.

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